quarta-feira, 2 de julho de 2008

Uma amostra de porquê ler a Divina Comédia:








O trecho fala da história de um amor adúltero que é interrompido pela vingança do marido traído: Francesca, casada com Lanceotto Malatesta, ama o seu cunhado, Paolo Malatesta que lhe corresponde o seu amor. Uma noite, trocando carícias e juras de amor, são surpreendidos pelo marido traído que os mata.Quando Dante e a sombra de Virgílio passeiam pelo círculo do inferno destinado "àqueles que trocaram a razão pela luxúria", cruzam-se com aquele par "leve ao vento" que sumária, poética e tristemente lhes relata a sua desventura:




“Neste lugar escuro onde eu me encontrava, o som das vozes melancólicas se assemelhava ao assobio do mar durante uma grande tormenta. Os tristes sons emanavam de um enorme redemoinho. Eram almas sofredoras, sacudidas pelo vento que nunca cessava. Entendi que era o castigo pela transgressão da carne, que desafia a razão, e a submete à sua vontade.
No escuro vento vi várias sombras que passavam se lamentando [...].
Poeta - eu falei - eu gostaria, se for possível, de falar com aqueles dois, unidos, que tão leves parecem ser ao vento.
Espera - respondeu -, em breve estarão próximos de nós, e quando a fúria do vento diminuir, peça, pelo amor que os conduz, que eles virão.
Então, quando a tormenta cedeu um pouco, eu chamei:
Ó almas sofridas, falai conosco, se isto for permitido! Elas ouviram, entenderam meu pedido. Deixaram o bando onde estavam as outras e se aproximaram. Uma delas falou:
Ó ser gracioso e benigno, o que desejares ouvir ou falar conosco, nós ouviremos e falaremos, se o vento permitir. Nasci na terra onde o Pó deságua. Amor, que ao coração gentil logo se prende, tomou este aqui, pela beleza da pessoa que de mim foi levada, e o modo ainda me ofende. Amor, que a nenhum amado amar perdoa, prendeu-me, pelo seu desejo com tanta força que, como vês, ele ainda não me abandona. Amor nos conduziu a uma só morte. Caína aguarda aquele que tirou as nossas vidas.
Ao ouvir esse lamento, baixei o rosto, e permaneci assim, até Virgílio me despertar. Voltei novamente àquele casal, e perguntei: "

Canto V, 121:
"Francesca, o teu martírio me traz lágrimas aos olhos, mas dize-me, como sucedeu que dos ingênuos enleios o amor passasse a proibidos anseios?"

E ela “Não existe dor mais profunda do que a ventura relembrar na desventura, verdade que o teu guia bem conhece. Mas se pões empenho no conhecer a história do nosso amor fatal, procederei como aquele que, chorando, narra. Líamos um dia – mero passatempo – o relato de como Lancelot resultara vencido pelo amor. Estávamos sós, desarmados de malícia. Por vezes, nossos olhares, se encontrado, fizeram suspender a leitura e mudar a cor das faces. Um trecho nos fez sucumbir: ao lermos como a ansiante amada fora beijada pelo febril amante, este que de mim jamais se aparta, todo a tremer, beijou-me a boca. Culpados pois, o livro e o seu autor – eis que, aquele dia já não lemos mais.”

"Enquanto uma alma contava a sua história triste, a outra chorava sem parar ao seu lado, e eu, comovido de piedade e dor, desmaiei, e caí como um corpo morto, cai”.






Bem, maravilhoso, não é? É uma versão em prosa. É genial Francesca culpar o livro e o sue autor, e depois dizer que aquele dia já não leram mais. Notem que estavam lendo um trecho dos amores de Lancelot e Guinévere. Lancelot, braço direito do rei Arthur e que o traiu com Ginévere, a rainha. Maravilha.

Meu soneto favorito de Augusto dos Anjos:





Psicologia de um vencido


Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.


Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.


Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,


Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!